A jovem Maria Alice Gadelha, filha caçula do casal Aline Pires Gadelha e Salomão Benevides Gadelha, ex-prefeito de Sousa, Sertão paraibano, recentemente publicou um artigo onde conta como seria, nesse momento de pandemia do novo coronavírus, um dos políticos mais lembrados da Paraíba, especialmente da “Cidade Sorriso“.
Meu pai em tempos de Covid-19
Estranho mesmo é lembrar de você em meio a tempos tão caóticos. Lembrar de alguém que só tem vida dentro de mim, porque se encontra em algum outro lugar que não sei definir. Só vivi dez anos sentindo sua presença mágica, os meus dez primeiros anos de vida, que hoje mais me parecem um sopro, de tão rápido que foram estes.
É porque tudo que é passageiro, fugaz e portanto, especial, parece mais rápido quando posto numa linha cronológica. Contudo, vivemos intensamente, um amor que só se encontra em livros e em filmes que do início ao fim nos subtraímos a lágrimas cheias de sal. O mesmo sal que tempera o mar e o deixa tão sinestésico, tal como as lembranças que tenho de você.
Nunca vivemos tempos tão loucos, se você ainda tivesse um lugar de fala por aqui, com certeza estaria cheio de elucubrações, renderia-se talvez a fazer uma “live” e explicaria o que pensa a respeito deste momento histórico.
É engraçado lembrar de você quando os pensamentos embaralhados rondam a maioria e também a mim, mas me recordo da sua calmaria, do seu cheiro de leite de rosas e de sua voz aveludada que tanto me confortava, confortava até mesmo o sujeito mais nervoso e hiperativo que lhe escutasse.
Você me vem em meio a bagunça, numa espécie de controle inconsciente. Me vem quando vejo a pasta de dente destampada, porque você sempre me chamava a atenção ao ver a pasta endurecida, rígida feito uma pedra, como se a falta de movimento lhe agoniasse.
Me vem quando vejo o tapete do chão do banheiro amarrotado, cheio de dobras e deslizes, talvez você tivesse um medo oculto de se deixar escorregar numa matéria tão miúda, por isso me repreendia quando via o tapete disforme, tinha medo que eu, de tão pequenina, não visse malícia ali. A malícia existe no pequeno, no invisível e hoje me dou conta disso.
Corrigia-me caso o porteiro do prédio passasse despercebido quando lhe pedia que me abrisse a porta, dizia que era de uma insensibilidade nunca vista não espalhar um bom dia por aí. Deveria lhe perguntar como vai e se caso eu entendesse de futebol minimamente, perguntar o placar do jogo da quarta passada. Agora tenho que perguntar ao porteiro como posso ajudá-lo nesta época tão incerta.
Você me vem como um alarme quando faço uma comida só para mim e não ofereço, quando faço café e não sirvo quem está comigo também, quando não dou o casaco que visto para alguém que se queixa do frio de uma noite determinada. O bem estar dos outros era talvez mais importante que o seu próprio bem estar e isso eu entendi bem.
E quando não há nenhum livro na ânsia de ser despido em minha cabeceira? Mas que ofensa que faço a você! Você deve se contorcer todo de onde está. Lembro de quando me lia o livro das virtudes antes que eu adormecesse, era um livro sábio e me despertava valores que você dizia que existiam em poucos, e me contava destes poucos que conheceu ao longo de sua trajetória de mil aventuras errantes.
Para você, em nossa casa, não havia distinção entre jovens e adultos, todos tinham valiosas lições para dar, idade não existia, até hoje não sei que idade você tinha. Você era cosmopolita, era contemporâneo.
As vitórias tinham de ser comemoradas, pois eram mais importantes que qualquer fracasso profundo. Você era um otimista nato, nunca vi alguém tão otimista quanto você. Em jogos de xadrez, que você tanto se deliciava, ficava tão feliz com a vitória de seu oponente como se fosse a sua, disso me recordo bem, apesar de pequena.
Quando perdemos mamãe, eu lhe fazia usar a sua aliança e a aliança dela em seu anelar, por angústia de menina insegura. Você me acatou, ainda que aquele gesto lhe afastasse algumas mulheres bem atraentes. Gestos eram importantes para você, fazia-lhe dar significados aos outros e as suas ações para com estes.
Meus tios dizem que você colocou a mim e aos meus irmão numa redoma, fantasiou-nos um mundo utópico. Não acho que você tenha fantasiado um mundo para nós, você apenas nos apresentou ao seu mundo. Pintou a tela de seu mundo para nós e estamos dentro desta tela até hoje.
Pintamos nossas próprias telas paulatinamente, a cada grande passo de nossas vidas pouco vividas, porém com você presente, em alma e balbucios que nos interrompe a rotina fustigante. Eu lhe agradeço por ter me dado tanta confiança, por me fazer acreditar e continuar acreditando que este mundo não é um deserto, que suas terras não são tão dificultosas quanto aparentam ser.
Por me fazer acreditar que posso cultivar um pouco de mim por onde vier a passar. Você me ensinou que podemos fazer com que os outros sonhem os nossos sonhos e vice-versa.
Você está presente em mim da hora que acordo a hora que durmo, feito a lua que me aparece a cada noite, às vezes mais brilhante e às vezes brincalhona, escondendo-se entre as nuvens, como quem diz: Você não precisa de meu brilho a todo tempo, ilumine esta noite por mim.
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